Durante cinco dias no fim de 1964, John Coltrane se isolou com seu saxofone no sobrado que havia acabado de comprar em Nova York. Quando reapareceu, sua esposa notou que ele estava especialmente sereno. "Esta é a primeira vez em que me veio toda a música que quero gravar. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto", disse. No mesmo ano, Coltrane gravava "A Love Supreme", uma suíte-marco da história do jazz, e, em suas palavras, "uma oferenda a Ele". A passagem acima é um dos relatos de "A Love Supreme - A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane", de Ashley Kahn. O autor norte-americano recupera todo o trajeto que Coltrane percorreu até a gravação do disco, em um retrato humano do jazzista, além de um panorama do gênero nas décadas de 50 e 60. Kahn já havia se debruçado sobre os bastidores da gravação de outro importante álbum do jazz, em "Kind of Blue - A História da Obra-Prima de Miles Davis" (ed. Barracuda). Ex-editor de música do canal VH1, professor da Universidade de Nova York, onde leciona uma matéria sobre Davis, Kahn conversou com Bruna Bittencourt por telefone. Leia trechos da entrevista.
FOLHA - Coltrane era extremamente dedicado a sua música. Depois de tantos anos praticando incessantemente, você acha que sua disciplina ultrapassou seu talento natural?
ASHLEY KAHN - Acho que ultrapassar não é o termo correto, mas potencializar. Ele trabalhou muito duro para levar seu saxofone ao nível que ele queria que sua música alcançasse. Era por isso que praticava e estudava teoria e harmonia da música sozinho, mesmo depois de deixar a escola de música -e muitos artistas param de estudar depois de atingir um certo nível. Ele não era um prodígio; Miles Davis também não. Os dois chegaram à sua sonoridade com sua carreira avançada. As pessoas não falaram de Coltrane ser um líder de sua música antes de ele ter 32, 33 anos. Não acho que ninguém tenha trabalhado tão duro quanto ele.
FOLHA - O que mais lhe surpreendeu durante a processo de pesquisa de "A Love Supreme"?
KAHN - Coltrane era muito atento e atuante no lado prático de sua carreira, do "business". Ele lidava com contratos, por exemplo; não era aquele santo que não podia tocar no dinheiro. Era bem esperto e consciente sobre o que estava fazendo com sua carreira.
FOLHA - A década de 60 foi a das religiões, de uma nova espiritualidade, material para Coltrone compor "A Love Supreme". Você acha que o disco teria a mesma aceitação se fosse lançado nos dias de hoje?
KAHN - Provavelmente não. Também não acho que o disco teria a mesma forma. "A Love Supreme" veio na hora certa. A espiritualidade dos anos 60 começou em 1965, 1966, o que coincide com o período do disco. Obviamente, não foi a única razão pela qual as pessoas se tornaram espirituais - veja os Beatles. Mas a espiritualidade da banda parecia indefinida e barata comparada à enorme dedicação de alguém como John Coltrane.
FOLHA - Como você escreveu, é difícil falar sobre Coltrane sem parecer exagerado. Como lidou com isso?
KAHN - Foi difícil. A verdade é que Coltrane era mesmo um indivíduo incrível. Era um herói espiritualmente e musicalmente. Don Cherry, que tocou com Ornette Coleman, conta sobre a atenção que ele tinha em viver bem, o que o tornou um músico melhor. Dia a dia, ele se preocupava em ganhar dinheiro, em montar sua banda. Isso é o que tentei fazer: mostrar o grande homem por trás da música.
FOLHA- Alguns críticos acham que Coltrane foi a última grande inovação do jazz. Você concorda?
KAHN - Ele foi uma das últimas grandes influências. Há sempre coisas novas acontecendo no jazz, mas nada importante o suficiente para a cena se mover em outra direção. Se você quiser mesmo medir onde o jazz está hoje, terá que ir além dele para achar onde estão seus limites -a palavra "jazz" não abriga todas essas experimentações e fusões com outros estilos. E se você pensar no jazz deste jeito, ele progrediu de muitas maneiras desde a morte de Coltrane. Isso foi tão importante quanto ele? Não. Músicos como Coltrane não surgem com freqüência.
FOLHA - Depois de escrever "Kind of Blue" e a "Love Supreme", como você compara Coltrane e Davis? O que eles representam para o jazz, assim como esses dois discos?
KAHN - Ambos representam o início do mais influente período da improvisação moderna - não me refiro somente ao jazz, porque suas influências vão além do gênero. Eles traduziram e evoluíram o som de Charlie Parker e Dizzy Gillespie -o verdadeiro começo do jazz moderno. E ainda estamos lidando com suas descobertas. Não acho que se possa dizer que estes sejam seus álbuns representativos, já que suas trajetórias compreendem muitas mudanças de estilo. Mas são álbuns que representam o retrato da música deles, a emoção de suas personalidades: a serenidade de "Kind of Blue" é Miles Davis, assim como a passionalidade e espiritualidade de "A Love Supreme" é Coltrane.
FOLHA - Seus três livros sobre jazz focam a mesma época, as décadas de 60 e 70. Você acha que este foi o período mais fértil do gênero?
KAHN - Nos anos 60, diferentes estilos de jazz estavam acontecendo ao mesmo tempo, nos mesmos clubes e festivais. Havia Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Dizzy Gillespie e muitos outros nomes do bebop. Havia ainda gente nova, como Davis e Coltrane, começando a acontecer; Ornette Coleman e o avant-garde. Foi um período muito especial para o jazz.
FOLHA - Seu livro é acessível mesmo para quem não é familiarizado com o jazz. Você acha que o gênero é tratado com uma erudição desnecessária?
KAHN - Claro. Esse foi meu objetivo. Muito da literatura do jazz é feita para pessoas que já conhecem aquilo. Jazz é música que entra pelos ouvidos e vai para o coração -e é só o que você precisa para ouvi-lo. Muitos alunos me dizem que até gostam de jazz, mas que não sabem muito a respeito. O conhecimento, porém, não é necessário para ouvir.
(Fonte: Bruna Bittencourt para a Folha de São Paulo).
FOLHA - Coltrane era extremamente dedicado a sua música. Depois de tantos anos praticando incessantemente, você acha que sua disciplina ultrapassou seu talento natural?
ASHLEY KAHN - Acho que ultrapassar não é o termo correto, mas potencializar. Ele trabalhou muito duro para levar seu saxofone ao nível que ele queria que sua música alcançasse. Era por isso que praticava e estudava teoria e harmonia da música sozinho, mesmo depois de deixar a escola de música -e muitos artistas param de estudar depois de atingir um certo nível. Ele não era um prodígio; Miles Davis também não. Os dois chegaram à sua sonoridade com sua carreira avançada. As pessoas não falaram de Coltrane ser um líder de sua música antes de ele ter 32, 33 anos. Não acho que ninguém tenha trabalhado tão duro quanto ele.
FOLHA - O que mais lhe surpreendeu durante a processo de pesquisa de "A Love Supreme"?
KAHN - Coltrane era muito atento e atuante no lado prático de sua carreira, do "business". Ele lidava com contratos, por exemplo; não era aquele santo que não podia tocar no dinheiro. Era bem esperto e consciente sobre o que estava fazendo com sua carreira.
FOLHA - A década de 60 foi a das religiões, de uma nova espiritualidade, material para Coltrone compor "A Love Supreme". Você acha que o disco teria a mesma aceitação se fosse lançado nos dias de hoje?
KAHN - Provavelmente não. Também não acho que o disco teria a mesma forma. "A Love Supreme" veio na hora certa. A espiritualidade dos anos 60 começou em 1965, 1966, o que coincide com o período do disco. Obviamente, não foi a única razão pela qual as pessoas se tornaram espirituais - veja os Beatles. Mas a espiritualidade da banda parecia indefinida e barata comparada à enorme dedicação de alguém como John Coltrane.
FOLHA - Como você escreveu, é difícil falar sobre Coltrane sem parecer exagerado. Como lidou com isso?
KAHN - Foi difícil. A verdade é que Coltrane era mesmo um indivíduo incrível. Era um herói espiritualmente e musicalmente. Don Cherry, que tocou com Ornette Coleman, conta sobre a atenção que ele tinha em viver bem, o que o tornou um músico melhor. Dia a dia, ele se preocupava em ganhar dinheiro, em montar sua banda. Isso é o que tentei fazer: mostrar o grande homem por trás da música.
FOLHA- Alguns críticos acham que Coltrane foi a última grande inovação do jazz. Você concorda?
KAHN - Ele foi uma das últimas grandes influências. Há sempre coisas novas acontecendo no jazz, mas nada importante o suficiente para a cena se mover em outra direção. Se você quiser mesmo medir onde o jazz está hoje, terá que ir além dele para achar onde estão seus limites -a palavra "jazz" não abriga todas essas experimentações e fusões com outros estilos. E se você pensar no jazz deste jeito, ele progrediu de muitas maneiras desde a morte de Coltrane. Isso foi tão importante quanto ele? Não. Músicos como Coltrane não surgem com freqüência.
FOLHA - Depois de escrever "Kind of Blue" e a "Love Supreme", como você compara Coltrane e Davis? O que eles representam para o jazz, assim como esses dois discos?
KAHN - Ambos representam o início do mais influente período da improvisação moderna - não me refiro somente ao jazz, porque suas influências vão além do gênero. Eles traduziram e evoluíram o som de Charlie Parker e Dizzy Gillespie -o verdadeiro começo do jazz moderno. E ainda estamos lidando com suas descobertas. Não acho que se possa dizer que estes sejam seus álbuns representativos, já que suas trajetórias compreendem muitas mudanças de estilo. Mas são álbuns que representam o retrato da música deles, a emoção de suas personalidades: a serenidade de "Kind of Blue" é Miles Davis, assim como a passionalidade e espiritualidade de "A Love Supreme" é Coltrane.
FOLHA - Seus três livros sobre jazz focam a mesma época, as décadas de 60 e 70. Você acha que este foi o período mais fértil do gênero?
KAHN - Nos anos 60, diferentes estilos de jazz estavam acontecendo ao mesmo tempo, nos mesmos clubes e festivais. Havia Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Dizzy Gillespie e muitos outros nomes do bebop. Havia ainda gente nova, como Davis e Coltrane, começando a acontecer; Ornette Coleman e o avant-garde. Foi um período muito especial para o jazz.
FOLHA - Seu livro é acessível mesmo para quem não é familiarizado com o jazz. Você acha que o gênero é tratado com uma erudição desnecessária?
KAHN - Claro. Esse foi meu objetivo. Muito da literatura do jazz é feita para pessoas que já conhecem aquilo. Jazz é música que entra pelos ouvidos e vai para o coração -e é só o que você precisa para ouvi-lo. Muitos alunos me dizem que até gostam de jazz, mas que não sabem muito a respeito. O conhecimento, porém, não é necessário para ouvir.
(Fonte: Bruna Bittencourt para a Folha de São Paulo).