“Saudades do século 20”, proclama o título de um dos livros de Ruy Castro, uma deliciosa coletânea de perfis de músicos, atores e atrizes que marcaram o século passado. Grande parte da obra do escritor e jornalista (nascido em Caratinga, Minas Gerais, mas carioca de adoção e paixão), na verdade, poderia ganhar esse epíteto. As principais manifestações artísticas e culturais do período, principalmente as de Brasil e Estados Unidos, passaram pela pena de Ruy: a bossa nova (“Chega de saudade”, “A onda que se ergueu no mar”), a literatura (“O anjo pornográfico”), o futebol (“Estrela solitária”, “O vermelho e o negro”), o Rio de Janeiro (“Ela é carioca”, “Carnaval no fogo”), Carmen Miranda (“Carmen”), a música dos grandes compositores americanos e o cinema de Hollywood (“Saudades do século 20”). No romance “Era no tempo do rei”, lançado em novembro de 2007 pela Objetiva/Alfaguara, Ruy Castro viaja um pouco mais, até a chegada da corte portuguesa ao Brasil, e imagina um encontro entre um imberbe D. Pedro I e Leonardo, personagem eternizado por Manuel Antônio de Almeida em “Memórias de um sargento de milícias”. Em território mais conhecido de Ruy, chegou às lojas também no ano passado “Tempestade de ritmos” (Companhia das Letras), compilação de artigos sobre jazz e música popular brasileira e norte-americana que abrange cerca de três décadas de produção na grande imprensa.
Em entrevista ao Último Segundo, o jornalista fala sobre os dois livros mais recentes e sobre o futuro da indústria musical.
Você lançou há poucos meses o seu segundo trabalho de ficção adulta (após “Bilac vê estrelas”), “Era no tempo do rei”. Por ser um romance histórico, o processo de feitura do livro foi parecido com o das suas biografias, baseado em muita pesquisa? O que diferencia o biógrafo do ficcionista no processo de pesquisa e escrita? Onde entrou a imaginação?
Em entrevista ao Último Segundo, o jornalista fala sobre os dois livros mais recentes e sobre o futuro da indústria musical.
Você lançou há poucos meses o seu segundo trabalho de ficção adulta (após “Bilac vê estrelas”), “Era no tempo do rei”. Por ser um romance histórico, o processo de feitura do livro foi parecido com o das suas biografias, baseado em muita pesquisa? O que diferencia o biógrafo do ficcionista no processo de pesquisa e escrita? Onde entrou a imaginação?
Nas minhas duas principais incursões pela ficção (“Bilac” e “Era no tempo do rei”), descobri que é difícil mudar as pintas do leopardo. Apesar de dispor de toda a liberdade do mundo – uma liberdade que o biógrafo não tem – e de poder inventar à vontade, nem assim dispensei a pesquisa. Estudei a fundo o Rio daquele período da chegada da Corte, li mais de 50 livros a respeito e aprendi tanto que poderia ir à televisão para responder num programa de perguntas sobre o assunto. Mas não posso minimizar a minha maneira de tratar essa pesquisa. Alguns personagens reais e absolutamente exuberantes, como a prostituta Barbara dos Prazeres, o major Vidigal e o inglês Sir Sidney Smith, por exemplo, foram descritos de maneira a parecer que foram inventados. E os inventados, como o vilão Jeremy Blood, os pilantras Calvoso e Fontainha, as ciganinhas, os capoeiras etc, foram descritos com tal seriedade que ficaram parecendo reais. Foi de propósito.
Quase sempre que D. Pedro é utilizado como personagem, principalmente pela televisão, é tratado como aquela figura histriônica, ninfomaníaca e irresponsável. O seu livro, ainda que de leve, resvala um outro D. Pedro, negligenciado pela mãe em favor do irmão e que vive solitário pela corte. Se você fosse abordar a vida adulta dele, teria evidenciado esses outros aspectos do personagem?
Dependeria de toda uma nova pesquisa que eu fizesse sobre ele. Para construir o D. Pedro adolescente, usei as informações mais ou menos correntes sobre a sua personalidade adulta. Com todo o seu temperamento meio estróina, ele foi um grande homem, e eu quis que ele fosse também um grande menino. Pensando bem, que bom para nós que ele tivesse sido estróina!
“Era no tempo do rei” é dedicado a vários autores e compositores cariocas e tem, como principal personagem, a cidade do Rio de Janeiro. O que ainda sobrevive daquele Rio de 200 anos atrás no Rio atual?
Em matéria de arquitetura, muita coisa, como vai se ver brevemente quando as restaurações dos monumentos e igrejas ficarem prontas. E várias das pessoas a quem dediquei o livro estão vivíssimas: Millôr Fernandes, Carlos Heitor Cony, Ivan Lessa, Aldir Blanc e outros que considero "herdeiros de Manuel Antonio de Almeida" e que não nomeei. Isso significa que aquele jeito de narrar, entre sério e airoso, que sempre caracterizou a ficção carioca e a melhor ficção brasileira, continua vivo. Na verdade, todo carioca, principalmente na Zona Norte e no Centro da cidade, é meio personagem do Maneco de Almeida. Pena que, fora do Rio, só o cidadão e o estilo de vida da Zona Sul sejam conhecidos. Mas, se você for a uma feijoada na Muda da Tijuca ou a um samba na Gamboa, é como se estivesse se transferindo para o Rio do passado.
Lendo os textos de “Tempestade de ritmos”, o seu outro livro lançado em 2007, é impossível não constatar sua desilusão com os rumos que a música popular tomou nas últimas décadas. A sofisticação e ironia de grandes compositores do cancioneiro americano e a técnica dos grandes músicos de jazz foram substituídas por letras repletas de palavrões, desafinações, rimas pobres e bases sampleadas por DJ’s. A que você atribui esse empobrecimento?
Acho que tem a ver bastante com a amplificação dos instrumentos, que, depois que começou, em meados dos anos 50, não parou mais. O negócio é tocar muito alto, não importa o quê. Ao mesmo tempo, a música deixou de ser importante na música e passou-se a privilegiar excessivamente o visual. E, finalmente, a estética do feio derrotou a estética da beleza. Mas veja bem: se os garotos só querem ouvir pancadaria, isso é com eles. Não ligo o rádio para ouvir rap, não vou a festas rave e, para mim, na minha casa e na dos meus amigos, a música continua uma maravilha.
Você parece nutrir um ódio particular pelo jazz feito a partir da metade da década de 60, mais especificamente a partir do advento do free jazz, mais atonal, e do fusion, que une o gênero ao rock. Mas como você escreve em “Tempestade de ritmos”, recentemente o jazz de apelo mais tradicional tem ressurgido com força. Você acha que isso é um bom sinal? Não acha que visões como a de Wynton Marsalis, que defende um completo retorno às raízes e respeito à tradição, pode estagnar um tipo de música caracterizada pela inovação e liberdade?
Não, você se engana. Não tenho ódio por nada ou por ninguém. Acho o ódio o fim. Além disso, não sou músico, não tenho capacidade para julgar certas coisas. O free jazz, por exemplo, nunca entendi. Já o be-bop, que alguém me acusou outro dia de não gostar, sempre foi o jazz com que mais me identifiquei. Torci por Wynton Marsalis na briga dele com o Miles Davis [na década de 80 os dois trompetistas se envolveram em uma polêmica sobre o futuro do jazz: Davis militava pela constante renovação do gênero ao misturá-lo a outros ritmos, enquanto Marsalis defendia a volta às raízes acústicas], mesmo reconhecendo que o Miles era muito melhor – mas a fusion roqueira precisava ser derrotada, como foi. Eu sabia que, depois de vencer a parada, Wynton não saberia o que fazer com a música. E não soube mesmo. Estão pipocando as comemorações dos 50 anos da Bossa Nova. Com tantas interpretações diferentes sobre ela – samba com jazz, música de consultório de dentista, a cara do Brasil, o gênero que não soube se reciclar –, ainda há o que se dizer sobre a bossa ou o assunto se esgotou?
Não, hoje há mais Bossa Nova do que nunca. O que se esgotou para mim foram aquelas perguntas, as mesmas de sempre: quando surgiu a Bossa Nova, quem inventou a Bossa Nova, de onde vem a palavra Bossa Nova? Meu Deus, ninguém fica perguntando isso em relação ao jazz, ao baião, ao cateretê! E você pode não acreditar, mas ninguém torce mais do que eu para que a Bossa Nova se recicle – desde que sobre as fundações do passado. Dou uma entrevista por dia sobre Bossa Nova, o pessoal no Japão, na Alemanha e nos Estados Unidos não sai de cima, e o meu livro “Chega de saudade” vai sair em abril na Espanha (depois de ter saído nos EUA, Japão, Alemanha e Itália) e em edição de bolso no Brasil, no que será a sua 25ª reimpressão só aqui.
Qual a sua opinião sobre o futuro da indústria fonográfica? Com a música digitalizada e os downloads, o formato disco tende a acabar?
O disco, por incrível que pareça, acabou mesmo, não? Entrei outro dia numa loja em São Paulo e parecia que eu estava entrando numa tumba. Aqui no Rio, a Modern Sound, talvez a melhor loja de discos do mundo no seu tamanho -- algo entre uma megastore e uma loja em que os vendedores conhecem todos os clientes -- talvez se transforme num bistrô musical. Hoje pode-se baixar qualquer coisa, de Britney Spears, que é o máximo do lixo, até Mabel Mercer, que é o máximo da sofisticação. Então, para quê disco? Apesar de eu ter acabado de dizer isto, você talvez esteja falando com uma das últimas pessoas que ainda compram discos -- não só CDs, mas também LPs e aceitam até 78s de quem tem para dar!
Ainda sobre a tecnologia: ao mesmo tempo em que o MP3 enfraquece o disco, hoje temos acesso a materiais sensacionais de grandes músicos do passado, desde caixas com vários CDs de gravações inéditas até raridades até então desconhecidas ou esquecidas em estúdios e bibliotecas. Onde se encontram e como dialogam o Ruy Castro amante do século 20 com o Ruy Castro colecionador dessas novas maravilhas?
Pois é, continuo comprando essas caixas enormes, com encartes altamente informativos e bem escritos. Na verdade, não tenho MP3 e acho o iPod uma aberração – para que vou levar minha discoteca comigo numa viagem? Será que não posso passar um mês sem ouvir meus discos preferidos? Posso, sim, e, quando viajo, gosto de saber o que tocam por onde vou.
Você sempre escreveu com propriedade sobre vários assuntos: música, cinema, literatura. Assim como outros jornalistas da sua geração. Hoje é difícil encontrar essa amplitude de conhecimento nos críticos. Falta especialização nos jornalistas culturais hoje?
Não sei, estou por fora das redações. Há vários garotos escrevendo bem. O fato de me interessar por música, cinema e literatura (além de história, comportamento, futebol, sexo etc) mostra que eu também não tinha uma especialização.
O tão comentado jornalismo colaborativo é uma conseqüência dessa falta de competência dos repórteres e críticos? Acredita que os blogs podem influenciar a produção do jornalismo cultural?
O que é "jornalismo colaborativo"? Essa aula eu perdi! Quanto aos blogs, podem, sim, influenciar tudo. Aliás, já estão influenciando. Antigamente, qualquer um podia escrever, mas só quem era bom publicava. Hoje qualquer um escreve e publica. Vai demorar um pouco para que os bons se distingam dos não tão bons.
Que jornalistas, críticos, cronistas ou colunistas você lê atualmente, do Brasil ou de fora?
Leio três jornais por dia, quatro no fim de semana e, às vezes, cinco, quando me chega de Búzios o “Peru Molhado”. Donde, leio e gosto de muita gente. Não quero citar nomes, para não omitir colegas que admiro. E passo o dia grudado nos jornais on-line, embora lamente que esse veículo maravilhoso esteja se limitando a manchetizar as notícias, quando tem espaço de sobra para comentá-las à vontade.
Serviço
“Era no tempo do rei”
Ruy Castro
245 páginas
Objetiva/Alfaguara
Preço sugerido: R$ 36,90
“Tempestade de ritmos”
Ruy Castro (organização de Heloisa Seixas)
415 páginas
Companhia das Letras
Preço sugerido: R$ 52,00
Postagem gentilmente cedida por Jonas Lopes (Gymnopedies)